sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Rosemary E. Galli

(Publicada originalmente na Latin American Perspectives. Versão em português publicada na Tensões Mundiais n. 1 Julho de 2005)

Neste fascinante estudo dos imigrantes brasileiros na grande Los Angeles, o objetivo de Bernadete Beserra é lançar luz sobre as maneiras através das quais o capitalismo age para trazer brasileiros aos Estados Unidos e sobre os modos como eles se integram em Los Angeles. Ela atinge ambos objetivos admiravelmente.

Sua metodologia consistiu de observação participante, documentação de atividades individuais e de grupos, coleta de dados socioeconômicos e também do questionamento da sua própria posição e interesses. Como ela e sua família foram imigrantes temporários nos Estados Unidos, Bernadete passou por um processo de aculturação similar ao das pessoas que estava estudando. Isto envolveu o aprendizado da língua e habilidades comunicativas e também o constrangimento de ser submetida a estereótipos resultantes da ignorância geral acerca do Brasil.

A estrutura analítica do estudo depende de uma definição de capitalismo como globalização que se espalhou desigualmente através do mundo e atrai as pessoas ao seu núcleo. Expressa economicamente, através de padrões de consumo, e, culturalmente, através das imagens do American way of life, o capital global, para a autora, equivale ao imperialismo estadunidense e exerce uma força magnética. Aqueles que imigram tornam-se arautos de sua virtude aos outros brasileiros, atraindo assim mais imigração. Intencionalmente ou não, alguns migrantes tornam-se agentes do projeto estadunidense. Ainda assim todos encontrarão racismo e discriminação graças à posição do Brasil no sistema capitalista mundial. Assim como Wallerstein (1995), a autora vê o racismo como a naturalização da diferença e como uma ideologia que justifica a desigualdade e exploração e, portanto, como um elemento essencial à sociedade de classes (15). Contudo, ela também argumenta que o modo pelo qual o imigrante brasileiro experimenta Los Angeles depende de sua posição de classe na sociedade brasileira e das estratégias que adota nos Estados Unidos. Bernadete introduz o conceito de Bourdieu das várias formas de ‘capital’, do econômico ao social, cultural e simbólico, para explicar como indivíduos se deparam com diferentes situações sociais.

Além de indivíduos, a autora estudou dois grupos de imigrantes, a Igreja Adventista de Fala Portuguesa, na cidade de Chino, região metropolitana de Los Angeles, e o Grupo de Mulheres Brasileiras, em Los Angeles. Ela escolheu o primeiro grupo porque ele “questionava os estereótipos mais comuns de brasileiros” (21) e o segundo grupo porque a ajudou a colocar questões de pesquisa bem diferentes. Quem, então, eram os brasileiros que a autora conheceu durante seus mais de dois anos de trabalho de campo? Das cento e noventa e cinco pessoas entrevistadas, a maioria era de mulheres casadas de classe média, entre trinta e quarenta e cinco anos de idade, de estados do sul e sudeste brasileiro e que haviam imigrado entre 1981 e 1999. A maioria freqüentara universidade, mas menos de cinqüenta por cento possuía empregos compatíveis com o nível de escolaridade.

O capítulo um descreve os caminhos através dos quais os brasileiros chegam a Los Angeles. Ela identifica quatro: 1) conexões com a indústria de filmes, artes e mídia; 2) casamento com cidadãos americanos; 3) o desejo por melhor educação e 4) filiação à igreja. Hollywood levou pessoas à indústria das artes de muitas maneiras. A indústria de criação de imagens idealizou os estilos de vida estadunidenses e também criou o imaginário de exotismo da mulher brasileira. Símbolos de boa vida e sensualidade penetraram a consciência brasileira e foram poderosos ímãs. A autora explica que o número desproporcional de casamentos entre mulheres brasileiras e homens americanos em sua amostra é resultado da atração de tais homens por uma mulher brasileira idealizada bastante diferente do estereótipo da mulher americana. Do mesmo modo, há certa pressão sobre as mulheres brasileiras para casar com um americano pois fazê-lo “é visto como um triunfo...” (46).

No caso da educação, o domínio estadunidense nos campos científicos age como um chamariz para estudantes que querem adquirir habilidades valorizadas no Brasil, Estados Unidos e em outros países. Os Estados Unidos ganham técnicos altamente qualificados a um custo baixíssimo já que o governo brasileiro subsidia a educação de seus estudantes. Apesar disso, a autora percebe que ao mesmo tempo em que a matrícula de estudantes brasileiros em universidades americanas confirma a hegemonia dos Estados Unidos, as universidades podem também ser terreno fértil para uma oposição radical à hegemonia estadunidense.

A globalização tem também acelerado a difusão de religiões, particularmente das religiões missionárias americanas. No caso específico do Adventismo do Sétimo Dia, Beserra descobriu que sua difusão no Brasil serviu como um portão de entrada para a imigração brasileira aos EUA. Mais do que uma religião missionária, o adventismo é uma instituição abrangente que inclui instrução educacional (incluindo nível universitário), saúde, produção e processamento de comida, publicações e abrigos para idosos. Para a autora, o adventismo é um processo de americanização que começa já no Brasil, durante a conversão a essa religião.

O capítulo dois lida com a experiência comum de todos os imigrantes brasileiros em Los Angeles: a classificação como latinos, uma categoria que lhes é imposta por suas origens latino-americanas independentemente de suas posições sociais no Brasil ou nos Estados Unidos. Os brasileiros encaram essa identificação como um estigma, o que tem a ver com sua noção do Brasil como superior a outros países latino-americanos. Para a autora, esse racismo espelha o racismo imperialista norte-americano inerente na definição da categoria ‘latino’. Com o objetivo de se distinguir dos outros latinos, os brasileiros buscam criar um espaço especial para si próprios mas, em alguns casos, como na luta por direitos e representação, eles são forçados a fazer parte da comunidade latina pois são muito poucos e estão muito distantes uns dos outros para formar uma comunidade própria. Em vez de comunidades, Beserra argumenta que os brasileiros em Los Angeles compartilham redes.

O foco principal dos dois capítulos seguintes é como estas redes que ela escolheu para estudar facilitaram o processo de integração de seus membros e a diferença que a posição de classe causa no processo. O capítulo três destaca a experiência dos adventistas de Chino. A maioria dos membros é de imigrantes brasileiros de primeira geração. Eles foram os fundadores da igreja; seus filhos, em geral, quando vão a cultos, freqüentam igrejas adventistas americanas. Quarenta e dois por cento da primeira geração tem diploma universitário e existem mais mulheres que homens. Além da religião, sua atração ao grupo parece estar relacionada à reprodução da cultura brasileira, especialmente visível nas atividades sociais da igreja. Contudo, para todos os membros a igreja de Chino foi um centro de informações sobre a área de Los Angeles e um intermediário entre o Brasil e os EUA. “É um espaço para aprender sobre a sociedade americana como seus membros a interpretam” (109). Para alguns, ela abre oportunidades econômicas e educacionais. Para outros, age como um lugar para mitigar as frustrações advindas da falta de oportunidades e para recanalizar as energias pessoais. Para todos, provê um centro para o tão necessário entretenimento. O adventismo agencia a americanização. Enquanto certos valores estadunidenses eram considerados apropriados, outros não eram. Freqüentemente conflitos sobre valores e comportamentos se davam entre membros da primeira e da segunda ou terceira geração.

O capítulo quatro trata do Grupo das Brasileiras. Originalmente uma reunião social entre mulheres de classe média e média-alta, ele permaneceu um ambiente onde certas mulheres de status ‘sentem-se em casa’. Sessenta por cento de seus membros são casadas com americanos; o que explica parcialmente suas necessidades de expressar a brasilidade em uma situação grupal. Mais de cinqüenta por cento possuía diplomas universitários. Assim como o grupo adventista, o Grupo das Brasileiras é um espaço social brasileiro. Contudo, nem todos as participantes sentiam-se à vontade. Algumas se sentiam inferiorizadas por seu status social. Outras não concordavam com a transformação do Grupo em uma organização sem fins lucrativos dedicada à promoção da cultura brasileira em Los Angeles.

A transformação do Grupo das Brasileiras em uma organização sem fins lucrativos em 1997 abriu um amplo debate, não apenas sobre os objetivos mas também sobre se os fundos levantados deveriam beneficiar instituições brasileiras ou americanas. A discordância com as diretoras, que pressionavam pela ‘profissionalização’ do grupo, manifestava-se em participação esporádica, não pagamento de taxas e falta de cooperação em atividades. Uma das diretoras sentia que a falta de cooperação devia-se à característica brasileira, em sua opinião, de competitividade excessiva. Dissidentes sentiam que os diretores exibiam outro traço brasileiro: a tendência dos grupos de elite de se autopromoverem às custas das classes subordinadas.

O Grupo das Brasileiras não negociava diretamente a integração de seus membros à sociedade estadunidense. Apesar de alguns diretores tentarem a experiência, através de colaboração e aprendizado com instituições americanas, para a maioria dos membros a integração era um problema individual. A assimilação era o objetivo particularmente daquelas casadas com americanos. Dentro do grupo, casamento com um americano conferia status tanto quanto o tempo de residência. Outras características (ou ‘capitais’ no sentido de Bourdieu) que conferiam valor eram: propriedades e investimentos; educação superior; e talentos especiais. Como na igreja de Chino, o Grupo das Brasileiras atuava como um centro de informação a respeito das várias formas de viver Los Angeles. Ele fornecia uma rede social oferecendo um apoio bastante necessário a mulheres de um certo status.

O capítulo cinco recapitula a temática do segundo capítulo, isto é, como os brasileiros em Los Angeles afirmam sua identidade, especialmente em relação aos estereótipos que os estadunidenses têm deles, o que Michael Kearney, no prefácio do livro, chama de a “autoconstrução” da identidade no novo ambiente.” Neste capítulo, a autora lida mais com o modo como eles fazem isso numa exibição pública, o Carnaval do Hollywood Palladium, do que de modo privado, como nos dois grupos previamente examinados. Primeiramente, alguns brasileiros assumiram os estereótipos comuns e os exploraram para seus próprios objetivos. Segundo, alguns nunca estiveram completamente submissos e deram um jeito de sair dos estereótipos discriminatórios e exploratórios. Por último, quase todos os brasileiros entrevistados acreditavam que sempre poderiam voltar para casa.

O capítulo final considera as transformações por que passam todos os imigrantes enquanto estão nos Estados Unidos. “...imigrantes são entes novos independentemente do fato de manterem-se ou não leais às tradições de seus países ou nascimentos (185).” Apesar da desilusão com muitos aspectos do American way of life, muitos permanecem. Alguns ficam porque seus filhos estão integrados e eles querem permanecer próximos deles. Outros ficam porque se acostumaram aos EUA ou adquiriram estabilidade econômica. Todos são nostálgicos de um Brasil mítico que é lindo e cujas pessoas são calorosas e esperançosas. As poucas exceções encontradas pela autora foram os brasileiros transnacionais que possuem os meios para viver tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil e aqueles que jamais voltarão por estarem bem integrados. Para esse último grupo, o Brasil é pobre, decadente e violento. Este capítulo é, portanto, menos sobre transformação, i.e., novas identidades, do que é sobre os estereótipos que os brasileiros têm sobre o Brasil. Ele fala diretamente à noção de Edward Said de identidade nacional como ‘geografias imaginárias’ (citado por Hall, 1992:301).

Resumindo: o estudo de Beserra argumenta que a primeira geração de imigrantes brasileiros na área de Los Angeles constrói suas identidades em relação a como elas são percebidas em seu novo ambiente, especialmente em relação aos estereótipos prevalecentes e também em relação à noção de cultura nacional que a maioria deles deseja preservar e reproduzir, daí as redes sociais que desenvolvem. O estudo segue o modelo sociológico de entender as pessoas em seus contextos, explorar suas auto-representações em diferentes situações, ver o eu em relação ao ‘sistema’ e manter o dualismo de ‘dentro’ e ‘fora’, privado e público. É possível, contudo, olhar para esse processo de ‘autoconstrução’ de uma perspectiva diferente da que Hall (1991, 1992) chama de ‘dialética das identidades’? Dessa perspectiva, ‘autoconstrução’ é vista como sendo uma resposta a uma globalização que não é tão caracterizada pelo imperialismo americano quanto pelo declínio da hegemonia estadunidense (Arrighi e Silver, 1999). A forma mais nova da globalização está associada com a transnacionalização do capital, bens, pessoas e mesmo identidades. É uma força centrífuga de tal forma que o consumismo que atrai brasileiros aos EUA é um consumismo global que poderia acontecer em qualquer lugar. A atração é a um mercado de trabalho que, em princípio, torna o consumismo global possível. Apesar de alguns brasileiros se identificarem com o sonho americano ou com o American way of life, o consumismo não é exclusivamente americano. Em vários pontos de sua narrativa, Beserra afirma que os brasileiros são americanizados (globalizados?) já no Brasil e alguns têm padrões iguais ou melhores que seus parentes imigrantes.

Hall (1992) sustenta que a migração tem desafiado os contornos estabelecidos da identidade nacional e que a globalização iniciou um alargamento do campo das identidades. Novas posições identitárias proliferaram e algumas se polarizaram. No trabalho de Bernadete Beserra, temos exemplos de algumas dessas novas posições: os transnacionais (sobre os quais, infelizmente, ela pouco diz) que são verdadeiramente descentralizados e os tradicionalistas na forma dos adventistas que se apegam a suas identidades em oposição a certos valores, modas e comportamentos propagados pela cultura de massa global. As diretoras do Grupo das Brasileiras e, de maneira geral, as esposas de americanos poderiam ser vistas como o que Hall (1992) chama de ‘pessoas traduzidas’ que habitam dois mundos, têm pelo menos duas identidades e duas línguas. Contudo, exemplos ainda melhores dessa nova posição seriam provavelmente os filhos dos imigrantes. É intrigante por quê Beserra decidiu não explorar esse grupo. No contexto dos adventistas de Chino, teria sido bastante possível graças à proximidade da relação que ela desenvolveu com os membros da igreja. Tem-se a impressão de que ela considera a segunda geração como integrada, americanizada, mas como sugere Hall (1992), talvez o fossem de uma maneira descentralizada, híbrida. Além disso, sobre as novas identidades, o texto teria sido mais rico se a autora houvesse explorado com alguma profundidade aqueles brasileiros que aceitaram a identificação com o estereótipo latino, particularmente aqueles que o viram como forma de expressar oposição a suas posições marginais. Meu ponto aqui não é que as pessoas possam ou devam ser fixadas em identidades superficiais e rígidas, novas ou não, porque pessoas são compostos de múltiplas identidades. A genialidade do argumento de Bernadete Beserra é que ela não faz isso. Meu argumento é que as identidades que as pessoas expressam não são em função de, ou estruturadas pelo imperialismo estadunidense, mas uma reação criativa à cultura globalizada homogênea, padronizada e a-territorial – uma política de posição.
A autora reserva sua própria opinião sobre a questão da imigração, classe, racismo, discriminação e exploração para a breve conclusão. Nela, ela explicita sua oposição como intelectual engajada e suas idéias para um mundo melhor.

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