Bernadete,
“As time goes by”.... Tive um grande susto quando, finalmente, abri o seu livro para ler: a data de sua dedicatoria era de praticamente um ano atras. Como diz o velho classico hollywoodiano, o tempo realmente passa. Mas, como crêem muitos, as coisas acontecem no seu tempo. Nesse caso, valeu a pena esperar.Para entrar no assunto, achei seu discurso muito corajoso. Nao e´ facil colocar-se, ao mesmo tempo, como observador e experimentador do objeto de analise. Eu sempre tive curiosidade de saber como seriam as dificuldades de um estudante brasileiro em um pais estrangeiro. Voce colocou tudo com muita humildade e, repito, coragem. Outras pessoas a quem eu tinha feito esta mesma pergunta, desconversaram. E voce sugere a razao disso tambem: esconder as dificuldades, e ate humilhacao que passaram, para nao diminuir, talvez, o brilho que a condicao de morador no exterior oferece aos olhos de quem fica. Outra questao bem discutida e´ o distanciamento que alguns brasileiros – iluminados – procuram manter dos outros conterraneos, quando os encontram no exterior. Um ate me falou que topou com brasileiros em dificuldades para conseguir informacoes em outra lingua, mas nao ajudou, por mero “receio” de se aproximar deles. Incrivel como brasileiros, que se dizem iluminados, reproduzem preconceitos, como: “brasileiro no exterior, e´ problema”; “brasileiro gosta de levar vantagem”; “e´ bagunceiro”; “faz pequenos furtos para mostrar que e´ inteligente”, etc. Voce, ao contrario, mergulhou nesse oceano de preconceitos para dar voz a esses brasileiros nao iluminados pelos holofotes da academia, fossem eles pretos, brancos, ricos ou pobres.Morei próximo de Sume o suficiente para perceber o peso, sobre nos, da referencia mitica do lugar de onde viemos. As pessoas sempre acham que fizemos algo, ou deixamos de fazer, em funcao de um lugar que não existe mais ou que, provavelmente, nunca tenha existido.A relacao que você faz com “distanciamento da cultura x descendencia de posição social” (ou a aceitacao de fazer certos servicos que o seu status nao permitiria no seu lugar de origem, independente do salario), fez-me lembrar de amigos e parentes que foram para Sao Paulo e, apos reencontra-los depois, foi como se o tempo tivesse passado somente para mim. Afora os sinais exteriores do corpo, o sotaque e as roupas novas, eles eram os mesmos do passado, com a mesma carga de informacoes e lembrancas. Ou seja, eles nao tiveram “tempo” de se apropriar da riqueza e diversidade oferecidas pelo grande centro urbano, ficando apenas com um pouco da riqueza material e a sensacao que estiveram ausentes do mundo todo o tempo. A sensacao de que nao sao mais de ca (o que eles procuram negar, como tabua de salvacao) e que nunca foram de la. Na minha percepcao, voce conseguiu captar os mesmos sentimentos expressos pelos brasileiros atraidos pela metropole americana.O canto da sereia americana. Você tambem foi bastante feliz ao descrever o mito da “american way of life”, ainda mais no mundo globalizado de hoje, empresas plurinacionais, fragmentacao do mercado de trabalho, etc.Vejamos algumas questoes pontuais do seu livro:a) Em varios pontos voce emprega um tom um pouco mais maniqueista, ou polarizado (imperialismo, classes sociais, etc). Entretanto, frequentemente o seu discurso rompe a dicotomia e se mostra multifacetado. Talvez tenha sido estrategia sua de atender alguma exigencia academica, sem, no entanto, se manter inflexível em torno das abordagens;b) O drama “racial” dos imigrantes em LA se assemelha, em alguns pontos, `a situacao vivida pelos escravos africanos ao chegarem ao Brasil. Estes tambem vieram de várias nacoes e procuraram se diferenciar uns dos outros, sendo mais doceis, mais cultos ou mais trabalhadores, etc. Ou seja - de acordo com o que voce percebeu em alguns brasileiros – procuravam mostrar-se mais adaptados ao colonizador. E tem um fato interessante: eles, os escravos, procuraram falar o portugues, quando os demais (índios e europeus) ja falavam a “lingua geral”. Em sintese: essa questao esta inserida na nossa memoria, enquanto povo;c) A definicao dada pelo pastor da Igreja de Chino, achei muito proxima da proposta dos jesuitas no Brasil colonial: para que os “coitados”, que tem dificuldade com a lingua, nao fiquem sem Deus;d) Senti a ausencia de uma referencia do que foi Carmem Miranda para a politica americana da “Boa Vizinhanca”, durante a segunda guerra mundial, quando o “engajado” Walt Disney criou o personagem “Ze Carioca”. Creio que esta informacao reforca a sua tese de que houve um momento historico de aproximacao intencional das duas culturas. Apesar do objetivo ter sido meramente propaganda de guerra, ao se juntar a outros meios de comunicacao, como o cinema, acabou alimentando desejos de imigracao (Nao devemos esquecer, tambem, da “qualidade” da industria cultural americana).Dois momentos me assustaram (certamente, devido aos meus devaneios historicos):1. o entrevistado falou que, diferente dos brasileiros, os portugueses “queimam as suas naus” para nao mais voltarem. Eu nao sei se ele tem conhecimento (posso apostar que nao) de que esta e´ uma transcricao literal de um fato historico terrivel: o conquistador espanhol Cortez queria atacar os Incas, com um exercito extremamente menor. Loucura que a maioria dos seus homens foram contra, ameacando partir de volta sem ele. `A noite ele ordenou que queimassem os navios para forcar o combate que, após alguns reveses, transformou-se num dos maiores genocidios de todos os tempos. Portanto, a citacao casa muita bem com a situacao descrita pelo entrevistado. Imagine, porem, o que deve passar pela cabeça de um mexicano – conhecedor da historia – ao ouvi-la!2. Outra entrevistada fala ao telefone: “Minha vida na selva”, se referindo ao Brasil. Para alem da Amazonia, esta citacao parece com o tragico destino da índia americana Pocahontas, que, ao se casar com um ingles, foi exibida como uma coisa exotica na Inglaterra – belo e pacifico exemplar do povos das novas terras – e acabou morrendo precocemente por conta de doencas adquiridas na “civilizacao.” A situacao da entrevistada tambem casa perfeitamente (ou será que tudo não passa dos meus delirios?).Enfim (o tamanho da carta e´ tambem uma compensacao pela demora), gostei muito do seu livro, o qual levantou muitas questoes do meu interesse pessoal e outras que eu nao tinha parado para pensar. Gostei para muito alem de voce ser minha conterranea (o que procurei filtrar ao maximo, buscando evitar julgamentos enganosos, tanto para mais quanto para menos). Precaucao, alias, desnecessaria, pois a sua competencia e naturalidade ao escrever, superaram esse meu receio logo nas primeiras linhas.Como mais uma tentativa de me desculpar pela demora, anexo um conto que fiz sobre o filho de Leoncio jornaleiro, desaparecido no periodo militar. Por você ser de Sumé, nao precisaria de outra razao para eu lhe enviar. Espero que goste e, se gostar, podera repassar para outras pessoas tambem (Sao 7 pequenos capitulos em sequencia).Um grande abraco,
Sonielson
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